Sofia...
Cotovia@mafalda.carmona
- ... era uma menina pequenina, e nos seus olhos de 2 anos e muitos, o mundo era feito de pessoas boas e generosas, como o "seu" J. e a Dona.B. a quem chamava TiTi.
Sofia vivia com a sua mãe, e cedo percebeu, também com as suas duas irmãs, mais velhas, a viverem na vertiginosa adolescência, uma loira e outra morena, tal como a canção de João, aliás Marco Paulo, mas que Sofia não podia, então adivinhar. No entanto, por detrás dos olhos de castanheiro serenos, Sofia adivinhava outras coisas, que registava calada e guardava delas segredo, porque as crianças são quem guarda, melhor, os maiores, e por vezes, os mais terríveis segredos.
Para a Sofia, havia coisas raras e estranhas na família. Desde já nunca vira o seu pai, e dele só sabia o nome, o papá J.
No entanto tinha o "outro" papá, o seu J, homem cheio de candura que trabalhava em Vila Franca de Xira, a levava ao cinema de bancos corridos ver filmes nas tardes dos domingos, lhe trouxe um cachorro abandonado na estação do comboio, a quem a mãe de Sofia chamou Bonnie, e no fim de vida o empurrou para as mãos de um caçador, porque descobriu tardiamente que a sua vocação era ser cão farejador, mesmo se Sofia sabia que o Bonnie estava velho, meio surdo e cego, ficou feliz em saber que graças ao seu nariz, lá se iria realizar o seu destino de cão preto e barbudo, meigo e obediente, a caçar nuvens no céu azul.
Este outro J. dividia a vida com a sua esposa, a Dona B. a Titi de Sofia que a levava a passear à praia, fazia croché debaixo do chapéu de Sol, enquanto Sofia, em sua pequena sabedoria construía pontes e túneis nas areias alvas da Costa da Caparica, antes de regressarem de comboio para o parque de campismo, onde no balneário tomava um belo banho, para levar os restos de areia, e trazer sonhos bons da cor do mar e do por-do-sol cor de rosa.
Dizia quem nada sabia desta família e da sua estranha geografia, a culpa da sua desventura, tinha sido de uma tempestade em mar alto, que a tinha amaldiçoado, na viagem de transatlântico daqui até as colónias lá muito distantes, entre paisagens tropicais e marés dissonantes.
Dizia a Sofia, no dia em que o seu papá J. chegou com uma boneca pela mão para a levar mais a mãe e irmãs para terras distantes, "Não és o meu J, aquele é que é o meu J. Não te quero nem à boneca."
Mas nem os apelos nem o choro, nem o seu J. e a sua Titi, lhe valeram, e nas vagas do Atlântico adivinhou com toda a certeza o naufrágio daquele Titanic: "A minha vida nunca mais vai ser a mesma..."