Sobrei. "Eu"
Cotovia@mafalda.carmona
Diário em leitura de Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva
Para o Dia da Mulher, em homenagem a todas as mães que não sobreviveram para partilharem memórias.
A memória é estranha. Emaranha-se, confunde-se, soma-se e multiplica-se. Faz-se das lembranças alheias, absorvidas por empatia — e também por simpatia, antipatia. Não sei se chegam de outras vidas, se apenas se repetem nesta vida.
Mas há lembranças que não se diluem. Colam-se à pele, insistentes, alojam-se, fazem parte para sempre. São fendas escavadas no tempo, onde caio a cada instante, tropeços exaustivos. E algumas são feitas de absoluto terror – poucos minutos, o regresso ao automóvel, a família destruída, espalhada num puzzle macabro pela estrada. O grotesco insuportável.
Ainda hoje espero uma resposta desta memória: porquê eu? Pergunto-me, uma, outra e ainda incontáveis vezes: se não tivesse pedido para pararmos, estaríamos vivos?
Como foi possível uma tragédia tão irreversível, um antes e depois curto demais, que me persegue em cada minuto desta sobrevida? Sim, aquele "eu" morreu naquela recta cortante, na fuga da minha cidade natal para a fronteira vizinha. Jamais saberei o que lhe estaria reservado, como viveria, riria, amaria.
Sobrei. "Eu".
Um eu tolhido, culpado, de lágrima fácil e coração saltitante, um resto de alguém, escondido entre memórias roubadas. Gostaria de não as ter. Ou, pelo menos, possuir uma mágica que obliterasse essas imagens, soterrando-as sob as outras, em vez de as manter ao lado, num casamento para a vida toda, indesejado. Não queria saudá-las todas as manhãs. Sei que lá estão, mas recuso-lhes até uma boa noite.
O que é certo é que, em viagem, evito parar na berma da estrada, por mais premente que seja a necessidade. Antes de sair, insisto com todos – dos mais velhos aos mais novos – para irem à casa de banho. Fico zangado quando recusam. Porque os acidentes são assim mesmo – começam com coisas ínfimas. Mas isso é apenas o começo. Depois, enovelam-se até serem maiores do que nós.
E aqui estou, ancorado ao instante que me partiu. Atingido desde criança por uma melancolia reservada aos que vivem muitos anos. Escravizado, capitulei no início desta memória perdida no som da explosão.
É assim que me lembro de ti, Mãe.
O beijo invisível na minha testa, tingido pelo batôn empastado de poeira e destroços.
Há muito que já não estás aqui. Na neve, desenhamos asas de anjos. Mas ao teu lado, mãe, sou apenas ausência. Apenas saudade. Apenas memória falha.
@mafalda.carmona
Sábado, Cotovia, Sesimbra, 8 de Março de 2025
Dia da Mulher
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