O Livro-Flor de Natal
Cotovia@mafalda.carmona
{O meu (outro) conto de Natal}
O Livro-Flor de Natal
Certo dia, recebi um presente fenomenal. Encontrei-o dentro do sapatinho, bem escondido debaixo da árvore de Natal, revelou-se extraordinário: um livro! Foi mesmo o máximo, o presente mais fantástico de sempre, uma maravilha. Mas o melhor que os livros têm, além das palavras, e das imagens bonitas, são as folhas. Umas folhas pesadas, encantadas, que fazem um som grave ao serem folheadas, outras mais leves, quase transparentes, como pétalas. Além de musicais, a fazer crepitar as pontas dos dedos, cheiram aos dias das pessoas quando são pequenas, como pinheiros, primavera, erva-doce, rebuçados, outras coisas doces, cheirosas, e por isso chamei-lhe "Livro-Flor".
Quando o leio, sinto essa vida de coisas pequeninas. Fico de coração leve, muito leve e até respiro melhor.
E fico a matutar numa pergunta: "Será que os corações pequenos, quando crescem, ficam tão pesados quanto as flores encorpadas, como a flor titã, e tombam?"
Mas não, o meu coração, por enquanto, fica transformado em coelho branco, de orelhas curtas, como 'c's, e um 'X' no lugar da boca, dois 'ó's no lugar dos olhos, uns 'l's nos bigodes, e, alegre, pula, ou salta como pipocas frescas, doces ou salgadas, acabadas de fazer.
Também gosto do meu Livro-Flor porque é uma espécie de cofre, onde ficam guardadas as recordações dos meus mais crescidos, dos grandes. Foi com eles que aprendi a desenhar as letras do meu nome, e me ensinaram o 'b' 'a' 'bá', em letras bonitas no quadro de giz. Ainda demorei até conseguir ler e aprender a história do meu país, onde as crianças podem caminhar, todas juntas, em céu aberto, os corações a bater ao compasso dos mini passos a avançar pela estrada, de mãos dadas com as suas pessoas crescidas, até ao pátio da escola.
Levam ao peito e na alma, cada vez mais fortes, todas as coisas que aprendem: amizade, fraternidade, igualdade, bondade, solidariedade, e tantas outras palavras corajosas.
Sei que não está tudo neste Livro-Flor, mas ainda assim está lá muita coisa. E germinam lá mais coisas, algumas fantasias, fábulas, ficções, outras realidades muito grandes e pesadas, outras mais ligeiras, cómicas, a fazer cócegas, em risos mesmo iguais aos de um tempo lá atrás, quando era possível brincar às escondidas, às casinhas, debaixo da mesa da consoada, do almoço de Natal, e volto a ser uma pessoa pequena, para brincar, para aprender de cor as lenga-lengas, e as canções.
Sobretudo gosto dele pois, quando o leio, acontece magia e posso ser um coelho, uma ovelha, um pássaro, raposa, mocho, um poeta, aviadora, astronauta, médica, escritor, aventureiro, polícia, investigadora, alfaiate, maestro, pescador, bombeira, agricultora, apicultor, seja o que for que aquelas letras alinhadas em substantivos, adjectivos, artigos, verbos, a formarem frases, agrupadas em parágrafos, são, ou sonham ser.
Gosto mesmo muito do meu Livro-Flor, acreditem, por isso regresso com frequência ao seu aconchego, mas apesar de tudo o que é bom, sinto igualmente preocupação, porque os corações dos mais grandes, digo, dos maiores, os crescidos, estão muito mais pesados, como troncos milenares, e esses ramos, de tão pesados, quebram, e ficam, depois, irremediavelmente partidos, tristes com o sucedido, durante algum tempo, ou para sempre, se o peso for realmente muito grande, maior do que o peso do coração, ele deixa de ter lugar, seja em que folha, ou pétala, for.
Agora que penso neles, nos crescidos, penso se seria possível construir uma tipografia onde coubesse toda a dor, e, em seguida, trocar a ordem das letras e das palavras, reescrever as histórias, escrever novos Livros-Flor, e oferecer paz, alegria, saúde, corações leves e acrescentar ainda palavras amáveis, bondosas, apaziguadoras, pacificadoras, que afastassem toda a violência e dor, recuperassem a fé na humanidade, e, a dignidade.
Há outra coisa fantástica: desde que o tenho, percebi que ele é muito meu amigo. Que nunca mais vou estar sozinha, pois ele foi capaz de me curar da minha solidão. E também me contou que tem muitos livros amigos, irmãos, primos, uma família inteira. Uns livros são mais pequenos, uns mais leves, outros mais pesados, uns de capa rija, outros de capa colorida.
Tão depressa quanto possível, garantiu, vai apresentar-me à família toda. Diz que grande parte vive num sítio chamado Biblioteca, onde há outros que são bastante diferentes, singulares, são desdobráveis, chamados mapas, que ensinam a chegar a todo o lado. E mesmo a sítios somente existentes na minha cabeça. Parece que se chamam mundos imaginários, habitam dentro de cada uma das pessoas. Todos temos muitas histórias dentro de nós, e existem também naqueles que nos rodeiam, que podemos ler, contar, escrever e partilhar.
Mais, quando leio, sinto que fui, sou, e serei, livre. Livre como um melro a aquecer as penas negras ao sol. Uma gaivota a voar, uma cotovia a cantar. Livre de ir a qualquer lugar, a qualquer país, livre, seja eu quem for, grande ou nem por isso, com mais ou menos idade, de sapatos ou galochas, de pés no chão ou aos saltinhos, com sol e com chuva, de verão ou de inverno.
Livre até para escrever no meu coração um calendário onde todos os dias são 25 de Dezembro. O dia em que festejamos um aniversário especial e em que recebi o meu Livro-Flor, também especial. Para o ler, ou para o escrever, até as folhas estarem cheias dessa música bonita, que, quando partilhada nunca é subtraída, sempre amplificada, numa melodia espantosa:
"É Natal, é Natal, um dia especial!"
É dia 25 de Dezembro, dia de Natal, dia 25 de Dezembro vezes 365 dias do ano, porque os livros também me ensinaram as contas de somar, multiplicar, e dividir... felicidade. Mostraram-me como é especial dividi-la para a partilhar e espalhar, como jardins de Livros-Flor, a atapetar e colorir todo o mundo com essa felicidade boa, que traz paz. Com muitos Livros-Flor de Natal, para dar, oferecer, ser, estar, presente, cada novo dia é uma oportunidade para conhecer novas histórias, livros e pessoas, pois a magia do Natal é tão forte que pode alcançar cada um dos dias do ano, e da vida do quotidiano, para escrever histórias que me fazem sorrir, aquelas que aquecem o coração e iluminam o caminho, pois cada página do Livro-Flor está recheada de amor.🌟
Feliz Natal e Boas festas!
Mafalda Carmona
15.12.2023 | 00:02 hr, em resposta a imsilva
Para lerem o outro conto da Cotovia, aqui.
Para lerem todos os contos deste Natal 2023, até agora, a colectânea dos contos no blogue da imsilva, aqui.
Um agradecimento especial ao blog da Cheia, pela inspiração para este conto de Natal, através do seu comentário ao conto anterior da Cotovia, "É Natal, Nasceu... Jesus.", obrigada caro José Silva Costa.