O tempo é como as bolachas...
Cotovia@mafalda.carmona
...ou como a história do macaco e os Planos Diretores Municipais.
- Continuando na saga das memórias, reflito que devo, finalmente, ter chegado aquela fase, incompreensível antes de lá chegar, "da meia idade". Agora já posso perceber que é aquele tempo onde (sim que para mim o tempo é um lugar, um espaço) já não se é completamente novo, e ainda não se é completamente velho. É ali um sítio indefinido, parecido com o canto do castigo, para onde o tempo nos arrastou.
Bolachas de gengibre fonte da imagem: https://pt.petitchef.com/receitas/
Observo alterações a comprovar este estado de sítio, todas visíveis, umas mais subtis que outras. Por exemplo, na categoria das alterações subtis, antes dizia, referindo-me ao passado, "quando eu era pequena", agora digo, com ar sério, "as minhas memórias", como se fosse coisa de suma importância. Não se aguenta.
De todas as formas, quer quando "era pequena", como agora, o conceito de tempo sempre foi qualquer coisa assustadora, a cair no âmbito das histórias do monstro verde que agora conto ao meu neto A. (embora no caso seja o monstro verde a estar com medo e não é, afinal, assim tão assustador.)
O monstro das cores vai à Escola, de Ana Llenas
E, neste ponto, para vosso (e meu) assombro, vou mesmo dizer como os mais idosos: No "meu" tempo é que as histórias eram assustadoras!
De todas as histórias, as mais assustadoras eram as da Avó C., como já tive oportunidade de vos contar noutro post aqui. Até porque, no tempo da Avó, segundo a mesma, além da própria vida (assustadora), as histórias eram mesmo muitíssimo assustadoras, eram metasustos! Nem sei, e até tenho medo de saber, qual a classificação das histórias da Bisavó ou Tetravó, para mais tendo origens na cultura popular da Beira Alta, no meio de montanhas misteriosas e perigosas, com um lobo mau debaixo de cada pedra e onde até as ovelhas tem dentes aguçados e são afinal cães pastores.
Como acontecia a qualquer criança, e verifico continua a acontecer, estas histórias assustadoras, bem como a circularidade do enredo a permitir recomeçar do final, geram um espanto tremendo, e por isso, obrigava a velhota a conta-las repetidamente, uma e outra vez, pobre senhora.
Sabendo disso, quando as conto ao meu neto, estabelecemos logo de início quantas vezes vou contar a história, e geralmente o netinho A. determina 5, mas o valor é renegociado para uma quota mais aceitável de 2 ou 3, porque a "pobre velhota", agora... sou eu.
Uma dessas histórias era a do macaco que, vaidoso, quis estar no último grito da moda, e foi ao barbeiro cortar a cauda.
Cedo verificou a sua insatisfação com o modelito, e, arrependido, quis recuperar a cauda. Pois. Não aconteceu, porque o tempo, como diz a música, não volta atrás.
História do macaco de rabo cortado e outras histórias tradicionais portuguesas
Não vou citar os pensadores e filósofos que se dedicaram ou dedicam a refletir sobre este assunto, pois vou recorrer à "prata da casa". Neste caso, o P., quando ainda pequeno pensador, declarou ser impossível ir à escola, pois, segundo o auto diagnóstico, estava "muito" doente, com ênfase no "muito", num discurso justificativo mais ou menos neste sentido: "-Porque as pessoas primeiro nascem, e depois vivem, e os dias gastam-se, e depois morremos, e a morte é uma doença, e eu estou muito doente!".
Para morrer deve ter ficado a Mãe A. com este raciocínio numa criança pequena. Teve de lhe dar razão quanto ao facto de o tempo se gastar, ou consumir, como um pacote de bolachas ao qual vamos tirando as bolachinhas uma a uma até não sobrar nenhuma, mas levou a desolada criança "muito" doente para escola como nos outros dias, porque o tempo é mesmo assim, como certas pessoas, só tem um sentido, para a frente!
Concordo com esta noção do tempo como uma espécie de doença, nem viral nem bacteriana, mas universal e transversal a todas as espécies animais, flora e até os rios ficam envelhecidos, desgastados e acabados. Ninguém, nem coisa nenhuma, escapa do tempo, nem as histórias de amor. No entanto os desapontamentos e ilusões vão-se esbatendo com o tempo. Nisso o tempo ajuda, e no vinho licoroso e do Porto também.
No resto... Não.
Assim, vou refletir convosco sobre a importância do tempo, mas, antes de mais, pensar sobre o alcance do tempo e os seus limites.
Mais ou menos como um dos instrumentos de gestão territorial, o PDM, adaptado a PDP, isto é Plano Diretor Pessoal ou mesmo Plano de Desenvolvimento Pessoal, tem limites e determinada extensão, definindo um território. Para tornar possível a sua correta gestão fica subdividido em diferentes áreas.
https://www.sesimbra.pt/viver/urbanismo/planos-e-programas-territoriais/pdm
Para "desenhar" este plano, identificar as diferentes áreas ou unidades de utilização de tempo é o primeiro passo. O segundo é identificar as características de cada área pois ele há coisas, pessoas e atividades onde e com quem o tempo é, na nossa percepção, bem passado, outras, as chamadas obrigações, para as quais temos de ter tempo, gostemos ou não, e ainda temos aquelas de que não gostamos, não queremos e não há tempo que resolva, ou altere, isso.
A cada uma das áreas, da família, do trabalho, hobbies, obrigações, rotinas, saúde e bem estar, amor, amizade, desporto, altruísmo, ativismo e sem esquecer o tempo para dedicar a cuidar da própria pessoa, é dado um espaço de tempo com regras, e limites, bem definidos.
Essa noção de dever, é bem compreendida na área do trabalho. Tanto que permitimos a essa área ser uma "ocupa" ilegal de todas as outras áreas, sem a contrariar nem aplicar qualquer tipo de medidas de controle.
É útil condicionar as construções ilegais no nosso território temporal.
Quando uma tarefa, coisa, pessoa ou atividade se apresentar, a carta de condicionantes e enquadramento é um recurso prático para verificar quais as características da ocupação dessa área, com o mesmo rigor usado por um fiscal da câmara ao inspecionar um lancil do passeio, parece de pouca significância, mas uma coisa são 12 centímetros, outra 2.
O mesmo se aplica às redes sociais, 15 minutos não são 150.
Determinados os dias da semana, programas, hora e duração, atividade, frequência, horário e local, todas as áreas estarão refletidas nestes mapas, indicações e calendarização com a mesma atenção e rigor. Também, em 2019, refleti num dos meus escritos aqui como fazer alguma coisa quando não apetece fazer rigorosamente nada, sobretudo quando estamos por nossa conta e somos os nossos próprios empregadores com tendência a emaranhar as áreas e tempos uns nos outros numa grande confusão (pior só os cabos elétricos e de net e de carregadores que tem vida própria e se embrulham com total autonomia sem demonstrarem qualquer boa-vontade em reverterem o processo).
Pode existir uma área em aberto para o "tempo surpresa", aquele que não cabe nas categorias principais, do tamanho suficiente para abarcar aquilo que nos apanha desprevenidos, esperemos coisas boas, mas não tão grande que se transforme num monstro (também já falei sobre estes "monsters" pessoais aqui.)
E quando alguma tarefa, pessoa, coisa, tiver uma proposta para a ocupação do nosso território de tempo, vamos analisá-la. Se for contrária ao PDP, às suas regras, mapas e cartas de ordenamento, o parecer é: Indeferido por incumprimento das regras do PDP.
Porque muitas vezes o mais importante é, afinal, encontrar o tempo, o espaço e a liberdade, para dizer:
Não.
P.S.
Na gestão do espaço-tempo é desejável que as áreas do tempo do "Outro", e do "nosso" tempo, tenham a mesma dimensão. Algumas vezes não equilibramos o tamanho destas duas áreas pelo receio de dizer não, outras, porque esquecemos tratar-se do "nosso" tempo e espaço.