Respirar
Cotovia@mafalda.carmona
Respirar
{Diário}
Sentei-me numa almofada, no chão da entrada. À esquerda, a porta da rua; à direita, o velho cão T., prostrado sob a manta, e o gato S., na cadeira. Dois níveis de existência distintos, pensei.
Estava a ler "Despedidas Impossíveis", de Han Kang. Por um momento, li em voz baixa, na esperança de o tranquilizar. Não adiantou. Continuei a leitura em silêncio, até que, sem perceber, dormitei.
Acordei com um som discreto: um espasmo involuntário do cão. Olhei-o. Inspirava, expirava – o leve movimento da manta confirmava. Respirava.
Lembrei-me de algo dito por uma médica:
"A fisioterapia é respirar, mas não de qualquer forma. Inspire como quem cheira uma flor; expire como quem sopra um balão; e, quando achar que já expirou tudo, expire ainda mais um pouco. Esse esforço final é o que faz a diferença."
Há nisso uma estranheza inesperada. Por vezes, a vida persiste no que parece exaurido, nos gestos mínimos que se repetem de forma consciente. Até que deixamos de os fazer. Porque insistimos em continuar para além desse ponto, para além do expectável, é um mistério.
A ventoinha do aquecedor, com o som constante, embalava o sono. Era cedo, e a madrugada fora interrompida pelo lamento do cão. Tapei-o melhor com a manta, enquanto o gato saltava para a cadeira, entregando-se ao ritual de cuidar do próprio pelo. O contraste entre a vitalidade felina e a fragilidade canina não me passou despercebido. Não seria eterna.
O corpo do T. estendido, moldado ao espaço do corredor, respirava em silêncio. Os olhos fechados parecem muito mais pequenos, e as lágrimas uma constante.
Os olhos ficam cada vez mais pequenos. Talvez as lágrimas fiquem do lado de fora porque já não há espaço dentro. Um pensamento perturbador.
Levantei-me, sentindo o frio do chão nas pernas, e preparei-me para o dia. Sexta-feira, normalmente a minha favorita. Hoje, não era o caso.
Passei com cuidado pelo cão a caminho da cozinha. Confirmei. Ele dormia, o corpo ajustado ao espaço. Respirações leves, pausadas. A manta a confirmar que está vivo, respira. Mas é a manta que está viva.
Suponho que, verdadeiramente, já não esteja.
É triste quando já não estamos nós, mas apenas algo que nos representa.
E nem sempre por termos partido. Nem sempre é físico.
Os sentimentos também respiram, mas partem primeiro. Vão com as lágrimas.
@mafalda.carmona
24.01.2025 | 13:31 hr