O Professor... e as Greves
Cotovia@mafalda.carmona
...ou o sarcófago...
ou a asfixia do sistema de educação, ou a turma dos 14...ou abram alas se faz favor...
- O professor C. era o professor coordenador do módulo de disciplinas técnicas e práticas de eletrotecnia. Foi meu professor, e de mais 13 alunos, durante 3 anos. As aulas decorriam em salas numa ala do edifício situada no piso térreo, com umas janelas estreitas de vidro reforçado em arame, com vista para o estacionamento, onde nunca entrava o sol, por estarem viradas a norte. Por isso, cheirava a mofo, e as placas de madeira que serviam para montar os circuitos de eletricidade, eram desagradáveis ao toque e deixavam um cheiro a madeira prensada desagradável, como o cheiro do cartão molhado.
As aulas de Matemática, Português, Físico-química, Filosofia, Inglês e Educação física, eram distribuídas pelas outras alas do edifício, em salas com janelas, bem iluminadas e algumas delas até no segundo piso, ou mesmo, como as de filosofia, na sala "anfiteatro", com boa vista. Por isso muitos dos 14, quando juntos aos restantes da turma geral, passavam mais tempo a olhar pela janela do que para o quadro bem iluminado, a receber luz pelo lado certo, sendo possível ver tudo o que lá se escrevia.
E eu fazia parte do leque que, nas aulas gerais, escolhera um lugar à janela, bem lá atrás, onde passava a maior parte do tempo a olhar para as nuvens, as pessoas e a praça, mesmo se agora já se via para o quadro.
Nos anos anteriores a esta experiência do "sarcófago elétrico", como interiormente passei a chamar ao conjunto de salas dos 14, escolhia uma carteira na fila da frente, de modo a ver bem o que se passava no quadrado preto, pois sou míope, e tinham deixado de nos sentar por ordem alfabética a partir do 7° ano, o que era muito bom para mim, porque não tinha de andar a fazer pedidos para me sentar na fila da frente, ou antes o meu encarregado de educação, pois para muitas pessoas a pitosguice alia-se à confusão auditiva, e nunca se chega a ver verdadeiramente bem, pois, a cada mês, a graduação aumenta um aro de fundo de garrafa nas lentes dos óculos, e não há orçamento familiar que aguente tanta mudança de lentes, destas, chamadas, miopias progressivas ou grandes míopes, o meu caso.
Por causa destas (des)ordens alfabéticas as amigas e amigos de escola têm todos os nomes ou começados por M, ou antes, o Luís tinha sido meu colega de carteira durante anos, ou a Mané (Maria Manuela), Maria João, o Mário, o Miguel, o Nuno, a Paulinha, o Paulo ( o "meu" Paulo), o Pedro, a Rita ( a "minha" Rita), o Rui, o Vítor, o Sérgio e por último, o Telmo, que ironia do destino, maldade, foi o primeiro de nós a partir em 2017, vítima de acidente na A1.
Ainda hoje, felizmente, muitos destes, se mantém como amigos, e com um deles até casei há mais de 33 anos, e é o pai das minhas filhas e avô dos meus netos, o que não deixa de ser interessante, pensar se me chamasse Ana, qual seria o efeito que isso teria tido.
Mas voltemos às aulas no sarcófago, onde os 14, mais o professor, 15, cumpriam o seu horário nas salas de aula com más condições, onde a má iluminação, era além de insuficiente, incorreta, pois o quadro estava posicionado a receber a luz vinda da direita, não víamos nada do que lá se escrevia, sendo a má ventilação responsável pelo acumulo de bolores e fungos.
Talvez por isso, o Professor C. andava sempre a fungar e a tossir, pelo que trazia consigo um lenço, de pano, como se usava na altura, com a inicial do primeiro nome do professor, outra que não a C, mas nesse tempo o respeito era muito bonito e mantinham-se as distâncias, pelo que não sabíamos qual o primeiro nome desta inicial, que tal como a identidade do seu portador, estava guardado no bolso do casaco, onde se assoava (no lenço, claro), que depois de aberto e usado, era dobrado meticulosamente para voltar para o bolso, até próxima utilização. Tudo muito ecológico.
Mas se pensam que o busílis era, apenas, a falta de condições da sala, esclareço que não era.
O busílis era que o professor tinha um ditado de sua estima, que repetia todos os anos, logo na primeira avaliação, quando ia entregando os testes, por ordem crescente de classificação, até chegar ao último, que neste caso era o primeiro, tomando à letra o estrito cumprimento deste ditado popular dos "últimos são os primeiros" para quando o aluno que melhor nota obtivera, e aguardava o teste, que o professor C. retinha, entre o polegar e o anelar, enquanto segurava um cigarro entre o indicador e o dedo médio, fazendo demorar e render o peixe.
Se acham que a descrição é demorada, estou a ser bem sucedida ao transmitir o sofrimento impaciente que se apoderava de todos os 14, sem exceção.
Assim o décimo quarto recebia, finalmente, o seu teste e ao mesmo tempo que era revelado o valor numérico em percentagem, o professor C. citava o ditado de sua eleição:
"O primeiro milho é dos pardais!'
Nestes momentos épicos, a juntar às más condições do espaço, juntava-se a total incompreensão do décimo quarto e dos outros 13. Só o Sr. professor tinha conhecimento dos porquês daquela tirada sem igual.
Isto fez com que o professor C. sem se dar conta, ou dando e fosse esse o propósito, suscitasse nos alunos uma curiosidade para descobrirem o significado desta curiosa expressão e do seu obscuro significado.
Cada um dos 14 deve ter chegado à sua própria conclusão.
Por mim aquilo que, resumidamente conclui, e que pouco tem a ver com o ditado preferido do professor, (senão no facto de o teto de notas do Sr. Professor ser, também em sincronia com o número de alunos da turma, 14), é que:
Primeiro: É errado colocar alunos e professores a trabalharem e estudarem em salas sem condições (esqueci de referir que a dita sala sarcófago era gélida no inverno, pelas portas de metal dos cacifos e nas janelas escorria água, e o Sr. Professor, mesmo quando não estava a fumar, qual dragão, exalava vapor de água, em forma de névoa digna de um romance dos cavaleiros de Avalon, a cada palavra...)
Segundo: Duas coisas boas, já não se pode fumar em espaços fechados, muito menos em sala de aula, e já não se sentam os alunos por ordem alfabética, espero eu, nas aulas.
Terceiro: as condições do espaço físico onde se trabalha, estuda ou vive, têm influência determinante na qualidade de vida das Pessoas, neste caso de alunos e professores, e obviamente, nos resultados escolares de alunos e desempenho dos professores.
Quarto: que isto tenha acontecido no século passado, e desde então já se passaram quatro décadas, mas não se passaram alterações significativas na maioria das escolas deste país, nem na precariedade da profissão de professor, é que é assunto para refletir;
Quinto: quatro décadas depois o nível de escolaridade obrigatório aumentou para o 12° ano, e as turmas não têm, por norma, 14 alunos, mas o dobro ou mais, e isso também é um assunto para refletir.
Além destes problemas, crónicos, no nosso Sistema de Educação, existem muitos outros que atingem professores, alunos e pais de formas diferentes mas com as mesmas consequências: más condições de trabalho e estudo, precariedade nas condições de trabalho, de acesso, e em consequência as vidas de todas as Pessoas que estão neste sistema, precisam de ser melhoradas, respeitadas e dignificadas.
Por isso, sim, eu apoio a greve, e também as manifestações, as demonstrações, neste caso, quando não há nada a elogiar, nem com o que concordar.