Ou o "Teatro do Mundo" de António Gedeão
- Este é poema vosso, Pessoas, nosso, e "meu" também depois de me ter sido oferecido por um Amigo virtual, um blogger aqui do Sapo, sobre este que é "O" Mundo, meu, nosso e vosso, em pluralidade. Essa pluralidade humana, percebo agora, onde o cumprimento ou elogio surge como mal educado se em vida.
Um mundo onde terei de, pacientemente, num exercício de desapego, esperar que o seu autor deixe esta esfera mundana, para poder ter o direito ao entusiasmo do elogio, então fúnebre, pois parece ser o único de bom tom e aceitável, para a modesta condição de algumas pessoas, a pretensão de outras ao anonimato, e, ainda aquelas que o sentem como uma agressão, como se quem elogia, cumprimenta, ou agradece, o fizesse com a intenção de legitimar a egocêntrica intelectualidade, superioridade ou cultura, num esfregar de umbigo narcisista.
Provavelmente, digo eu, quem elogia, tem como sentimento, não o se sentirem superiores, ou terem a pretensão de dar o seu aval seja ao que for, mas pelo motivo de genuinamente gostarem, e de ser um contributo inesperado para a vida, pois nesse momento de partilha, surge a ilusão, ou sonho, de se pertencer a um todo muito maior do que a individualidade.
Na impossibilidade de terem capacidade para retribuir, em igual medida, neste dar, manifestam o cumprimento ou o elogio em reconhecimento desse receber, amizade, amor, gratidão.
Não é grandiosidade.
É humanidade, não é para satisfazer os outros, é para os reconhecer.
E neste processo é, fundamental, também por respeito e lealdade, citar os autores, nomear, dando os créditos a quem de direito, numa demonstração de reconhecimento, de memória (que mesmo não servindo para muitas outras coisas, terá de servir para esta) para citar, quem antes o disse e escreveu, viveu e partilhou, se disso tivermos conhecimento (ainda que o desconhecimento não desobrigue).
Talvez por a minha escolaridade ser técnica, em eletrotecnia, que me é instintivo enunciar as leis, e os seus autores, e tal como a Lei da Relatividade de Einstein E=mc², ou a Lei de Lavoisier que todos nos habituamos a enunciar como "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", também as experiências vividas terão uma finalidade.
E, até mesmo o tempo que julgamos ter perdido, num emprego, numa relação, num compromisso, ou a lutar por uma causa, quando os resultados não se anteveem, como o caso das greves neste momento, (dos oficiais de justiça, e as que tem acontecido, dos professores, dos médicos, enfermeitos, trabalhadores da CP, comunicação social...)
Assim, deveremos parar as demonstrações?
E podemos fazer um exercício e imaginar uma sociedade sem estas demonstrações, sejam de greve, de agrado, de desagrado, de apoio, de solidariedade, de ajuda, de felicidade, de tristeza, de entusiasmo, de pesar, e refletir como seria e quais seriam válidas e aceitáveis, e quais teriam de ser medidas, contabilizadas, e mesmo abolidas, e refletir sobre as consequências e mundo resultante.
Entretanto, conquistámos a democracia, foi uma luta de gerações para se mudar, foi preciso uma revolução, e alcançamos juntos a democracia, mudamos políticas, costumes e mentalidades, fizemos, muito recentemente, na pandemia covid, enormes sacrifícios, dura realidade de muitos, consciência de todas as perdas.
Acabou o inaceitável "um homem não chora".
Passamos agora para o aceitável "um homem não ri".
Pode ser alegado que no tom, na medida dessa demonstração, tem de ter um limite, aceito que por educação e em nome do convívio, ou do que é "adequado" em sociedade, há necessidade de refrear essas demonstrações, para encontrar um equilíbrio, que, respeite as diferenças para não se tornar agressivo, ou mesmo asfixiante.
Ou seja o abraço físico voltou a ser possível, mas o abraço emocional, é uma companhia inconveniente.
E, porque não é possível ter dois pesos e duas medidas se nos propomos aceitar, e por em prática, a pluralidade em igualdade, é importante a aprendizagem de saber dar este abraço emocional, saber elogiar, e, igualmente importante, saber receber o elogio.
Coisa que, ao invés da agressão, não se aprende nas escolas, muitas vezes nem no núcleo familiar e, infelizmente, estamos mais habituados a reagir a uma ofensa ou agressão do que a um elogio, embora tanto na ofensa como no elogio, esteja implicado um julgamento do Outro, e a pessoa que o recebe, pode sentir-se constrangida ou mesmo envergonhada, agredida, ou ainda, terrível, na obrigação de retribuir.
Na retribuição da ofensa todos fomos educados a saber o que dizer, fazer, reagir.
Já quando nos dirigem um elogio, de consideração, interesse, respeito, admiração, estima e afeição, ou até mesmo a enaltecer a gentileza, amabilidade, simpatia, inteligência ou capacidade, ficamos desconfortáveis, quase preferíamos a ofensa. E em vez de ser uma alegria e motivação, é uma preocupação e gera ansiedade, mais do que levar uma bofetada.
Pode parecer estranho como um elogio, sentido e verdadeiro, é tão prejudicial.
Talvez por isso os amorfos polegares azuis sejam, afinal tão mais reconfortantes, e mantenham a sua confortável superioridade, beneficiando da inércia da vontade na aprendizagem da prática saudável do elogio e do cumprimento.
De sermos amigos uns dos outros... em vida.
Assim, a propósito, mas sem propósito senão o da manifestação da diversidade de sentires, seres e estares, aqui ficam transcritas as palavras de António Gedeão, nos poemas, "Teatro do Mundo" e "Movimento Perpétuo", logo a seguir à fotografia, originalmente publicada pelo jornal Sol, aqui no Sapo, no artigo https://sol.sapo.pt/artigo/549818/romulo-de-carvalho-antonio-gedeao-um-principe-renascentista-atravessa-o-seculo-xx,
Boa tarde, Pessoas!
Teatro do Mundo
Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.
Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.
Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.
Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.
António Gedeão, Teatro do mundo
Impressão Digital
Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D.Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!
in "Movimento Perpétuo", 1956