Um urso à janela...
Cotovia@mafalda.carmona
Ou não se pode agradar a Gregos e Troianos.
- Sim, Gregos e Troianos os da maior guerra da história antiga porque depois, na tal era contemporânea, decidimos superarmo-nos todos em guerras generalizadas, e isto é, mesmo, um post que vai falar de política, embora não pareça à primeira vista, mas começa por reforçar o regime da política aqui do blogue. Como sabem as Pessoas que aqui "aterram", e que de vez em quando leem mesmo os post (ou publicações) até ao fim, que quem aqui (m)anda é uma Cotovia e que se quiserem também (m)andar podem participar nos comentários.
Cavalo de Troia de Giovanni Domenico Tiepolo
E é mesmo esse o caso, ando por aqui a escrever as minhas coisas sob a asa protetora da cotovia, ave do canto da manhã e também o nome da localidade onde vivo, e, como certos desportistas, frequentemente, beneficio da tutela dessa 3ª pessoa.
No entanto, por esta altura, posso revelar que na verdade estou mais para urso, como o urso polar que se refugiou na estação meteorológica abandonada na ilha Norilsk, no Ártico Russo, à janela de casa a ver as nuvens que passam, e no caso do urso, o degelo.
Agence France Press link facebook
E convenhamos que não são, por estas paragens, os ursos os únicos abandonados, negligenciados e mal governados.
Como disse Balzac no prefácio para a "Comédia humana":
O animal (...) toma a sua forma exterior, ou, para falar com mais rigor, as diferenças da sua forma, nos meios onde se desenvolvem. As espécies zoológicas resultam dessas diferenças. (...) Compenetrado desse sistema(...) compreendi que (...) a sociedade se assemelhava à natureza. (...) As diferenças entre um soldado, um operário, um administrador, um advogado, um desocupado, um sábio, um homem de Estado, um comerciante, um marinheiro, um poeta, um mendigo, um padre, são, conquanto mais difíceis de apreender, tão consideráveis como as que há entre o lobo, o leão, o burro, o corvo, o tubarão, o lobo marinho, a ovelha etc."
Mas, também por essas paragens é estritamente proibido dizer que o "rei vai nu".
Aliás, é proibido dizer seja o que for, ou mesmo pensar, muito menos expressar. Nessas paragens não estaria nem eu aqui a escrever, nem vocês, Pessoas, aí a ler, nem sequer o urso, ou algum de nós, à janela, porque estariamos todos em recolher obrigatório.
É por isso que Darwin, o master do naturalismo científico, parece estar a dizer para estardes caladinhos que no fundo sois, sim humanos, mas isso é uma espécie animal, não vos esqueçais disso e cuidadinho aí com a evolução, olhai bem para onde vos estão a levar os vossos dirigentes, ditadores e senhores da guerra, essa coisa do lixo de plástico, dos micro-plásticos por todo o lado, incluindo dentro de vós mesmos, no sangue, no leite materno, mais a vossa falta de sustentabilidade e a subida do buraco do ozono e do nível dos oceanos, vejam onde vos vai levar, que atrás vem gente, ou não será certamente gente, será outro bicho qualquer, que conseguirá reinar no caos que vós estais a construir.
Pensando bem talvez Darwin pretendesse dizer sossegadinhos.
Pois bem, e mesmo indo a minha admiração incondicional, toda a admiração, mesmo os 100%, o meu animal número um, para as abelhas, concretizada na bumblebee, lá, sossegadinha e caladinha, a fazer mel nas latitudes do frio, protegida pelas pantufas, caneleiras e cotoveleiras naturais, confesso partilhar características, no fundo, com um urso pardo, nomeadamente o mau-feitio, que por estas paragens ursos polares, por enquanto, de certeza não há, e espero, por todos os motivos que nunca venha a haver porque isso significaria que todos nós ficaríamos a dever muitíssimo à inteligência, e ao sentido de sobrevivência.
Teríamos dado tudo, o nosso melhor, para a destruição massiva do planeta.
Esta escolha, tal como no jogo da nomeação de 3 animais por ordem decrescente de preferência, em que o 1º revela o que gostaríamos de ser, o segundo o que os outros acham que somos, e o 3º, e último, o que realmente somos, revela duas coisas ao mesmo tempo: primeiro aquilo que mostramos aos outros nem sempre corresponde ao que realmente somos ou por sobrevalorização ou por desvalorização; segundo, a verdade deve estar ali algures no meio termo.
Consideremos uma árvore. Primeiro, Millet a ponta e depois a pinta Van Gogh. Resultam duas árvores diferentes, em virtude da "maldita intervenção do autor'(as aspas pertencem aos teóricos do objetivismo). Mas é precisamente essa inevitável irrupção do artista no objeto que torna a árvore de Van Gogh superior à de Millet (...) Mais ainda: essa árvore é o retrato da alma de Van Gogh.
in Ernesto Sabato, O escritor e seus fantasmas, Edição Companhia das Letras.
Embora possa parecer que a escolha do urso pardo se deva a uma sobrevalorização do ego, trata-se simplesmente de uma necessidade de rugir bem alto, pelo abandono dos ursos, do senso comum, da paz e também a incompreensão pela recorrente exploração do mais fraco pelo mais forte, pela regurgitação dos anais da história a cuspir para o presente criaturas hediondas que não cabem em nenhuma espécie existente, porque são monstros, e persistem em brincar aos deuses quando são, unicamente, miseráveis.
"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa".
Hölderlin.
Não devido às neblinas místicas e dramáticas do inverno, mas pela condição humana, perante as coisas desagradáveis da natureza e injustiças da vida, percebo a ausência da costela dramática e poética.
Se existisse, ao invés da revolta, iria como Pessoa, mas desta fez o Fernando, "fingir verdadeiramente a dor que deveras não sinto" até a sentir e agradecer a todas as neblinas, chuvas, escuridão, frio e todos os outros tormentos invernosos pela inspiração vinda do frio e da guerra.
É que drama já trágico, adquire dimensões dantescas, quando se lhe acrescenta temperaturas muitos graus abaixo do zero.
Daquelas temperaturas que congelam mesmo, choque hipotérmico, no seu máximo exemplo fazem cair membros e causam a morte, e nos exemplos prosaicos gelam a água dentro das canalizações, obrigam a usar vidros triplos, que não existem, e uma Pessoa não consegue ter uma única roupa que não esteja molhada pela neve, pela chuva e pelo frio, além de não haver eletricidade, gás ou seja o que for para manter a presença do calor, nem alimentos, nem forma de sobreviver, manter a esperança ou a chama da vida.
Mas não é preciso fingir nada.
Porque a realidade está lá. É reportada todos os dias por aqueles que são exatamente isso: repórteres. Que mostram os milhões de Pessoas que veem as suas vidas confinadas a um romance escrito por déspotas que as destratam, mal-tratam, esmagam e matam. Sem memória. Sem respeito. Sem pudor.
Em lugares e Pessoas onde a felicidade não mora, nem com sol nem com chuva, se deseja viver o lugar comum, os sorrisos desapareceram e apenas a saudade se demora enquanto o terror parte e reparte, num jogo torpe de baralha e volta a dar.
Termino com uma citação de Miguel Esteves Cardoso, no jornal Público, datada de 3 de Março de 2022,
"A formiga brava":
" A coragem é uma qualidade que não se pode fingir. Nem aprender. Nem sequer se pode ser corajoso para toda a vida ou para todas as coisas. a coragem é uma visitação. É um estado de graça. É um que-se-lixe. É uma ausência de indecisão. (...) Não se pode provar e muito menos medir, (...) A coragem impressiona e comove. Mas também contagia."
Podem ver o artigo completo na imagem que partilho aqui:
Quanto a esta Cotovia, espero bem que sim, que haja uma valente pandemia de coragem.
Bom fim-de-semana Pessoas, bon courage!