- Ou a princesa da França - As ilhas (realmente) desconhecidas, um dos livros da FFMS (Fundação Francisco Manuel dos Santos), da autoria de Joel Neto, que encomendei para a biblioteca do ninho, é um pequeno conto, realista, de 78 páginas que se lê de forma envolvente em poucas horas.
Esta coleção dos "Retratos da Fundação" pretende trazer ao leitor um olhar sobre a realidade do nosso país, contado, vivido e narrado, por quem o viu - e vê- de perto.
No caso deste conto, o autor, que nasceu e cresceu na ilha Terceira, e embora tenha vivido por 20 anos na capital do continente, Lisboa, regressa aos Açores, onde vive desde Agosto de 2012, "retrata" ou conta a história do quotidiano de Jénifer, uma menina que se recusa a ver como solução de futuro a existência tal como determinada em sorte (discutível esta terminologia, talvez destino seja um termo mais adequado) pelo local de nascimento, pelos pais, família e comunidade.
Jénifer tem um plano.
Qual é, teremos de ir percebendo ao longo da trama, passada num bairro social dos Açores, entre o (des)funcionamento das atividades agrícolas, o tráfico de droga, o consumo, o alcoolismo, o insucesso escolar, o suicídio jovem, a violência doméstica, o abuso sexual, o incesto, a exploração sexual, e a paisagem natural da ilha:
(...)"O sol nascia-nos por detrás das costas e, à esquerda, as primeiras projeções de luz incidiam sobre um mar feérico, de um azul oleoso, estendido sob uma neblina através da qual começavam a recortar-se ilhas de diferentes formas", nestas ilhas, onde a solidão das vacas se mistura com a solidão da ilha e das Pessoas, (...) "- Sabes que as vacas sofrem muito de solidão? (...) - tanto que um animal deixado sozinho num pasto nunca produziria tanto leite como aquele que passasse o dia rodeado de outros da sua espécie.
Da leitura deste conto, ficam diversas reflexões, considerações pessoais para serem geridas e interiorizadas. Uma delas, o fascínio e encantamento pelo mar, que sendo maioritariamente descrito, quer em literatura como em testemunhos pessoais, como um elemento fantástico, tem este contraponto negativo e desesperante do isolamento, da política corrupta, do tráfico e consumo, assim como a impunidade...:
(...)"E confessou que fora a São Mateus uma vez, tempos antes (talvez tenha dito "anos"), comer um gelado com um senhor (foi a expressão que -Jénifer- usou, "um senhor"). Depois, porém, não prosseguiu no relato, e de repente eu temi que se encontrasse aí pelo menos parte da chave para o enigma que constituía."
Este "enigma" pode ser subentendido logo no início através de duas citações que precedem o conto:
"Nas autobiografias, tal como na história, há situações em que os factos não dizem a verdade.
J. Mitchell, O Segredo de Joe Gould
Ninguém guarda melhor um segredo do que uma criança.
V. Hugo, Os Miseráveis