A Cotovia...
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Cotovia@mafalda.carmona
(1)...em aparição na versão de Raul Brandão de "Os Pescadores" foi uma grata surpresa, ou até um espanto, descobri-la nas páginas deste livro, que não resisti adquirir.
(2)"(...) Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. (...) Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. - Eu também nunca mais a esqueci..."
(3) Não lia Raul Brandão desde a minha juventude, e o seu nome remete-me sempre para um outro autor, Aquilino Ribeiro, num dos meus livros preferidos da altura, a saga dos Brandões, no romance "A Casa Grande de Romarigães" de 1957, lido nos anos finais dos anos 70 do... século passado... fascinou-me então pela abordagem da história desta família desde o tempo dos " Filipes, mas que se estende por inúmeros momentos marcantes da nossa História, nomeadamente a Guerra da Independência, as Invasões Francesas e a Guerra dos Dois Irmãos." conforme sinopse da obra no site da biblioteca Bertrand, que podem ver aqui:
https://biblioteca.bertrandeditora.pt/reader/index.html#!/
E por associação também me remeteu para a introdução do eucalipto no nosso país, para alimentar a indústria da pasta de papel, com a consequente destruição do habitat e equilíbrio ecológico da nossa paisagem com a introdução destas árvores, vindas da Austrália que se consideraram úteis, além da elevada rentabilidade económica, para a drenagem de zonas alagadiças e pantanosas, as quais em poucos anos produziam milhares de toneladas de madeira para a pasta de papel.
Mas, não é de eucaliptos nem da Austrália, continente e país que um dia gostaria imenso de visitar, e que seria, a acontecer, digamos a viagem da vida da Cotovia, que este postal vem retratar, mas sim este livro "Os Pescadores", nomeadamente o capítulo referente aos pescadores de Sesimbra (Lisboa, Setúbal , Sesimbra e Caparica), com a descrição rica de um ambiente que não existe mais, e até o caminho pela que é hoje a nacional 378, é relatado nas suas inúmeras particularidades, assim como os especiais pescadores de Sesimbra e a sua solidariedade descritos do seguinte modo:
"(...) à esquerda o dorso formidável da Arrábida e algumas casinhas juntas com lindos nomes rústicos - Quintinha, Sant'Ana, Cotovia. Estamos perto. A carripana vai descendo para Sesimbra pela estrada em torcicolos"
(...) Este homem é de instinto comunista. Se um adoece, os outros ganham-lhe o pão: recebe o seu quinhão inteiro. Se morre, sustentam-lhe a viúva e os filhos entregando-lhe o ganho que ele tinha em vida. (...) O produto das artes é dividido em quinhões iguais pela companha. A pesca do anzol é uma espécie de cooperativa, e a barca quase sempre dos pescadores.(...)
Já nesta mesma semana, estava a Cotovia a ver um filme em sessão com direito a pipocas, quando aparece a seguinte frase, também ela relacionada com Pescadores:
"A ambição de um homem nunca deve ultrapassar o seu valor"
Como pertenceu ao diálogo de uma personagem, não faço ideia se é uma citação ou uma criação, mas no contexto, fez-me reparar no pormenor de que apenas uma letra separa a palavra Pescador da palavra Pecador.
E como, de voo em voo, todos os eventos levam a Cotovia à Poesia, fui aterrar na escrita deste soneto, pois que as nossas paixões se revelam nas mais pequenas coisas, e o soneto é uma paixão, tal como diz a querida Poetisa Maria João de Brito na apresentação do seu blogue poetaporkedeusker:
"(...) porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem."
E aqui fica mais um poema da Cotovia, em exercício de aprendizagem do formato de soneto em verso alexandrino, espero que gostem!
Navega o Pescador nesse Mar das Palavras
**
Adivinhasse quem revolto mar aporta,
Soubesse o que convém, saberia ao que vem.
Tempestade a nascer de alva e doce nuvem,
Mas célere a forjar tirânica comporta.
*
Que nome tem então o eterno Pescador?
Ou será outro alguém a quem de facto importa?
Nessa alvorada atroz quando a navalha corta,
Recolhe o fundo anzol onde germinou a dor?
*
Desencanto e traição, arpão na alma entranhado,
Desinquieto mar de ondas tremeluzentes,
Maré surda a afogar desastre sonhado.
*
Nenhum pesar desfaz rumo mal ordenado,
Inverte a subversão de torpes maldizentes,
Nem resgata o azul céu a quem foi abandonado.
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Mafalda Carmona
21.07.23 | hr. 8:45
editado em 21.07.23 | hr.16.58
(1), (2) e (3) Fotografias da capa, orelha e página 123 da obra de Raúl Brandão, "Os Pescadores", Book Cover Editora, ed.outubro 2020 ISBN: 978-989-8898-69-2
P.S.
Notas de aprendizagem poética, soneto alexandrino:
"Um alexandrino "vero" tem de ser dividido em dois hemistíquios de exactamente seis sílabas poéticas cada um. Assim sendo, aqui temos "ta, ta, ta, ta, ta, TÁ//ta, ta, ta, ta, ta, TÁ".
Ou acabamos o primeiro hemistíquio com uma palavra aguda - pão, fiz, farei, amanhã, etc. -
ou caso acabemos com uma grave ou paroxítona - minha, fome, ritmo, pára, etc. - teremos de iniciar o segundo hemistíquio com uma vogal que possa fazer crase com a vogal imediatamente anterior - exemplo:
" A luz com que nos cinda//assim que nos beijar".
Nunca, de forma alguma, o primeiro hemistíquio poderá terminar numa palavra proparoxitona. Estas são as três condições absolutamente essenciais para que um soneto dodecassilábico possa ser considerado alexandrino.
Resumindo: É comum chamar-se de alexandrino os versos de 12 sílabas, entretanto os verdadeiros alexandrinos são compostos de dois versos de seis sílabas, 6/6, sendo indispensável que o primeiro termine em palavra aguda, oxítona, ou, no caso da palavra ser grave, paroxítona, que a palavra seguinte comece por vogal ou h mudo, assim possibilitando a elisão." De Maria João Brito de Sousa em comentários.