O Lama e o macaco espertalhão...
Reedição original Nov2022
Cotovia@mafalda.carmona
- Ou como a notícia sobre o Dalai Lama torna a reedição deste post do ano passado acerca do livro de Afonso Cruz, oportuna, e assim aqui fica, com uma nota prévia.
Nesta nota tenho a fazer a seguinte consideração pessoal:
Quando o "ir à ópera" do macaco se torna uma "brincadeira', é porque o hábito já se normalizou, e ali, no Tibete, o bicho apesar de não ser um macaco bêbado, afigura-se ser um lama que, não estando na ópera, vestiu a pele de lobo para uma exibição que revela um hábito enraizado, que não aponta para os frutos caídos da árvore da cultura, mas para frutos doutra índole, e esses expulsam qualquer um do paraíso, sobretudo o Dalai Lama.
Quanto ao livro de Afonso Cruz sobre a viagem à árvore da cultura, tem apenas uma polegada, um dedal, de vino veritas.
Gosto de livros, sobretudo de bons livros. Daqueles onde se ganha um bilhete de viagem, e assim que se começa, logo na dedicatória, no prefácio ou nas primeiras linhas, nos fazem divagar, voar em novas considerações, relembrar coisas lidas, escutadas ou vistas, nos dias vividos ou por viver.
Quando aquela história contada faz crescer outras histórias paralelas. Quando faz sonhar. Ou dá vontade de rir, chorar, até cantar, às vezes, outras, zangar, na maioria, sentir. Ler é um enorme antídoto para a insensibilidade, para o torpor. É o acender da esperança.
É assim que acontece com o livro de Afonso Cruz, 'o macaco foi à ópera'.
O Macaco foi à ópera de Afonso Cruz da Coleção da Fundação Francisco Manuel dos Santos
Macaco é um termo de origem africana (provavelmente do banto makako).
E neste caso, um bom livro é como um bom vinho. O vinho presente na comunhão em Cristo, presente também no universo social, muitas vezes com moderação, óbvio, apenas a quantidade necessária para nos fazer ser civilizados e manter a humanidade, apesar do obscurantismo das 'sopas de cavalo cansado', em boa hora substituída pela sopa de letras, e pelas escolas.
Na orelha da capa, escuta-se, perdão, le-se (pois a voz do autor é forte e impõe-se na imagem das palavras que o texto nos vai transmitindo), o seguinte:
"No início... houve um macaco espertalhão que desceu da árvore para comer frutos caídos no chão, mais maduros, logo, mais doces, logo, mais fermentados, isto é, com um leve cheirinho a álcool. Outros macacos se lhe seguiram e, com o aumento das calorias consumidas, foi um passo até que lhes crescesse o cérebro, a coluna se endireitasse e as mãos se libertassem. Mais um passo... e estávamos a ir à ópera."
Seja na ficção, seja na vida real, Afonso Cruz tem muito para nos oferecer, material para refletir, como neste livro da coleção Retratos da Fundação onde examina a teoria designada por "macaco bêbado" como a causa para o homem se ter, justamente:
"erguido sobre duas patas, perdão, pernas se ter tornado bípede sem penas."
Oferece ainda um postal marcador com um nome e duas datas, 17-12-12 AMBER 02-02-13 sem mais indícios, e, se num ímpeto de curiosidade folhearmos o livro, descobriremos na página 69, o último capítulo, o 13° (embora não esteja numerado), intitulado, providencialmente:
"Resumo para quem não tem paciência de ler o que se disse antes."
Para descobrir a chave deste e outros enigmas sobre a evolução do homem, este livro, está disponível na livraria da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Nele, podemos perceber histórias muito próximas das nossas, por excessos, por hábitos, por desigualdades, por injustiças, por carências:
"A avó dos meus filhos, que nasceu numa aldeia isolada do Alentejo e teve uma paixão proibida e incompreendida pelos livros, tinha de ler às escondidas porque a leitura era uma actividade inútil, não era produtiva, e uma mulher devia dedicar-se aos meritosos descasque de batatas e cosedura de meias"...
Cresci sempre rodeada de livros, tive essa sorte, e quando não os compro, a biblioteca municipal é o meu espaço favorito.
Nunca fui impedida de ler seja o que fosse, nem sequer isso foi uma questão, quer em casa como na escola era um hábito cultivado e considerado um bem-querido. Uma ferramenta para construir o conhecimento, pois quando aprendi a ler já estávamos em Democracia, por isso, sempre houve Liberdade para ler tudo, em todo o lado, no elétrico, no autocarro, metro, comboio (desde que não em hora de maior afluência de passageiros que ai não há lugar para nada nem ninguém...), cafés, na praia, e sobreposta a outras tarefas que é o fantástico da leitura. Não que chegue ao primor dos nossos amigos franceses, que literalmente, leem enquanto andam em plena rua, faça sol ou chuva, em malabarismos de equilibrista entre o chapéu de chuva, a mala, e o livro, normalmente a chamada edição de bolso, pois equilibrismo e magia têm limite.
Na magia da escrita de Afonso Cruz sobressai a criatividade, que exercita e nos convida a fazer uma reflexão sobre a importância das estruturas narrativas para através delas (re)descobrir o Mundo, num enredo onde este macaco bêbado é personagem divertido ou até espertalhão, mas transversal a diferentes temas contemporâneos que importam ao autor abordar, para, transmitir uma mensagem, forte, sobre o Mundo atual.
Por todos estes motivos, fiquei impressionada por conhecer este autor, que se assume como humano de 2 patas (perdão duas pernas), tal como esta criatura segunda-autora Cotovia, e em breve espero ter a oportunidade de ler este autor noutros registos e estilos, o que só será difícil pela proficuidade refletida nos inúmeros títulos por ele escritos.
Natural da Figueira da Foz, premiado pela União Europeia entre outros prémios como o Prémio Fernando Namora, o Prémio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil do Brasil, em mais de 30 livros publicados, traduzidos em mais de 20 idiomas.
Mas o que mais impressiona nesta leitura, não são os prémios.
É como Afonso Cruz nos apresenta em pouco mais de 70 páginas, o percurso da vida humana, como uma surpreendente Epopeia contemporânea, com as qualidades e vícios inerentes, os acúmulos e reservas, e, o papel central do álcool, seja no vinho ou na cerveja, para a evolução humana, segundo o autor a apresenta.
Uma coisa é certa, ficamos com vontade de ir à ópera!