...ou o Cuquedo, ou o Medo de Al Berto.
- Esta plataforma do Sapo tem muitas coisas boas e bem pensadas no que ao funcionamento de uma comunidade diz respeito.
Quotidiano casual, fotografia de Mafalda Carmona.
E faz a diferença entre um dia através das lentes do "BW", black & white, e um dia em modo "HDR", high dynamic range, porque tal como se define, a plataforma do Sapo, tem mesmo muitas Pessoas de coração, alma e criatividade.
Uma grande comunidade onde a partilha e troca de ideias e opiniões é o ingrediente para garantir dias diferentes.
É também essa a informação sobre o SAPOBLOGS, acessível numa pesquisa sumária, quando se carrega no "i" nos links das partilhas do conteúdo dos blogs nas redes sociais:
Assim, quando através da notificação recebida por e-mail de um dos blogs que subscrevo, o Sapo me apresenta a oportunidade de ler "também em destaque no Sapo Blogs - Ler mais" para ficar a conhecer outros artigos e blogs, geralmente digo:
"-Sim!"
E, por isso, metade dos meus blogues subscritos, foram assim "descobertos" nos destaques.
Hoje foi a vez das escritas da M. me serem sugeridas pela equipa do Sapo como destaque.
O título é "Escolher ser feliz" do blog "Designing my Dream Life"
https://designingmydreamlife.blogs.sapo.pt/escolher-ser-feliz-12414
A publicação da M. fez-me recordar esta mesma lição, embora na altura ficasse por aprender, aplicada por uma amiga de juventude, curiosamente também de nome iniciado pela letra M.: ter um caderno para apontar poesias.
A "minha" M, fazia-se acompanhar do tal caderninho onde transcrevia os poemas e letras de músicas, suponho também citações do seu gosto, bem como aquelas suas escritas sobre os mais diversos temas, desde sonhos a pensamentos, seus umas vezes, alheios outras. Anos mais tarde a M. foi a professora do último ano do 1° ciclo de uma das minhas filhas, a melhor professora que eu poderia ter desejado, e sou-lhe muito grata.
Neste ponto do rever memórias, e com a descoberta destas coincidências trazidas pela leitura do post, pensei que realmente a análise (ou critica, ou análise crítica) da poesia poderá ser uma fonte de aprendizagem e conhecimento para quem tem a vontade ( "vontade" parece-me um vocábulo mais adequado do que "aspirar", a aspiração para mim é uma palavra demasiado utópica, parece-me algo irrealista, sem ter agregado o trabalho implicado no esforço consciente de alcançar um objetivo) de escrever consistentemente, poesia.
Assim, propus a mim mesma, (propostas sempre fantásticas pois reduzi as hipóteses de rejeição a praticamente zero, e, não sei se reparam, mas aprendi também aqui nos blogues, a por os meus comentários em letra de tamanho menor), levar a cabo a análise do poema correspondente ao dia de hoje do poemário de 2005 da Assírio & Alvim.
Fiquei muito satisfeita, por mais uma vez o Sapo ser um mediador de contactos pois o autor do poema de hoje, Al Berto, remeteu-me de imediato para outro blog, o (que conheci através dos destaques do Sapo) do Paulo José Martins que também conheci através dos destaques, neste post, "Será Possível Publicar em Portugal sem ter Curso Superior?":
https://paulojosemartins.blogs.sapo.pt/sera-possivel-publicar-em-portugal-sem-16802
Passemos então à análise do poema "O Medo" de Al Berto (1948-1997):
Começando, e, ainda antes de vos passar a transcrição, porque pela leitura inicial me chamou a atenção um pormenor, (que faz toda a diferença), da escolha de um vocábulo em vez de outro, pois poderíamos encontrar a palavra "espuma" e ainda assim tudo continuaria a fazer sentido, mas, quando Al Berto opta por outra palavra, dá origem a uma outra imagem, exatamente a palavra a dar origem ao título deste post:
Fertilidade.
Esta "fertilidade", em conjunto com o nome dado ao livro que apresenta este poema, "Medo" conflui para a ideia de poder existir uma fertilidade no medo. Por outro lado, esta capacidade de escolha, remete para o post da M., onde a sugestão é escolher entre a tristeza e a alegria, e, podemos perceber como, mesmo quando insuspeito, todas as coisas se ligam entre si, e elas connosco.
Aqui fica a transcrição do poema da segunda das "Doze Moradas do Silêncio", inclusa no "O Medo" https://www.academia.edu/42790080/Al_Berto_-_O_Medo
"A Escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo"
Escusado será dizer que tendo encontrado a versão on-line, me lancei na leitura deste "Medo", com imenso afã, só ultrapassado na tabela de prioridades de leitura, pela versão do medo explicado às crianças no livro, o "cuquedo".
Retomo a minha reflexão, ou análise pessoal, deste poema:
Em primeiro lugar, observo que bastava alterar 3 palavras (as em itálico) e todo o sentido do poema se alteraria, mas não me cabe a mim fazê-lo, é apenas uma observação que registo para uso posterior na minha própria escrita, ou seja, mesmo um poema "finalizado", pode com alterações mínimas, mudar por completo o tema e tom, podendo daí resultar uma versão mais interessante e quiçá mais intensa ou inovadora.
Em segundo, aborda temas recorrentes na poesia deste autor como a mortalidade, a transitoriedade, a fragilidade da vida e da identidade, mas,e exatamente pela cuidadosa e intencional escolha de vocábulos, aliado ao efeito de eco em "areia e mais areia", em que transmite e reforça a ideia de movimento continuo, da repetição e da monotonia, na construção de "altíssimas paredes de nada", como se a imagem poética estivesse presa num ciclo interminável de construção e destruição, evocando também a imagem de praia que se estende até ao infinito, a aumentar a sensação de isolamento e solidão, eis senão quando...
Surge a paixão.
Expressa nas palavras, nas emoções expressas pelas metáforas, pela natureza, por objetos guardados, por um desejo visceral, talvez de manter vivas as memórias do passado, ou talvez, pelas imagens enigmáticas, fomos transportados para um espaço intermediário, talvez entre o sonho e a realidade, ou entre a vida e a morte, e agora irrompemos na necessidade de nos conectarmos a ideia de continuidade da renovação através da fertilidade da criação, como uma decisão intencional, necessidade criativa tão visceral como as palavras sobre as quais recaiu a escolha de Al Berto.
Para finalizar, podem perguntar, o que aprendi com esta análise do poema?
Neste poema estão presentes vários pontos que poderiam ser avaliados de forma negativa, e a evitar para quem está a aprender, e ainda não domina a escrita de poesia, ( ou provavelmente qualquer tipo de escrita) para não ficar embaraçado com o resultado final:
1. A aparente falta de coesão e unidade temática pois o poema parece desdobrar-se em várias direções e gerar propositadamente a dispersão, para no final, recuperar o fio condutor que une os diferentes temas. Se este efeito não for conseguido, resta apenas a falta de coerência e foco;
2. A repetitividade (até a palavra é repetitiva...e o corretor sublinha-a como erro!) se intencional e gerida de forma adequada, funciona, se não for esse o caso, pode tornar-se cansativa e redundante;
3. A ausência de rima formal, se ausentes outras características de coesão e critério, pode passar por falta de cuidado com a sonoridade e a musicalidade do texto, o que no caso, tendo um ritmo livre, ainda assim este flui de forma poética e musical;
4. O obscurantismo de algumas passagens, herméticas ou ambíguas, exigem ao leitor um esforço acrescido na interpretação, o que pode ser positivo no sentido de desafiar o leitor, ou subverter as suas expectativas, mas também pode ser recebido como uma barreira e dificultar a comunicação, a compreensão da mensagem, ou mesmo a desistência da leitura.
Além disso, a nível pessoal, retive o reconhecimento da importância da escolha das palavras, e da sua combinação, no impacto do significado do poema, aprendizagem talvez óbvia, mas que este poema ilustra na perfeição.
E neste ponto, Pessoas, após esta "de-ta-lha-da" análise, esta Dona Cotovia, como me chama aqui no Sapo o F. Carita Mata (passem pelo seu blog cheio de belas fotos e histórias do Alentejo) sinto-me uma detetive investigadora de poesia, a desvendar os mistérios "por trás das palavras" de Al Berto. Mas, muito mais haverá a refletir sobre este poema e o seu autor, a margem para interpretação é maior do que o... Cuquedo!
Só não vale chamar o medo de aprender a escrever poesia!