Era um tesouro! Verdadeiramente!
E no pacote vinha uma imagem de Cristo com anjinhos, ou uma imagem de Maria com manto branco e azul e um menino Jesus pela mão ou ao colo rodeados de pombas brancas e rosas, ou ainda a imagem de uma multidão de pessoas com mantos azuis, vermelhos e brancos a rodearem uma espécie de gruta de onde saiam raios de luz.
Na companhia da Avó e das amêndoas, descíamos mais um pouco a rua, e lá íamos sentar-nos no miradouro, as duas de frente uma para a outra, nas namoradeiras do muro, e então a Avó falava sobre o Jesus, porque o Jesus estava no pacote das amêndoas e isso era sempre o mote para a Avó começar a contar a história do Jesus, um Homem que tinha vivido no tempo dos Romanos e que era filho de Deus, mas também de José e Maria (um conceito que levei algum tempo a absorver pois o Pai, o meu, não era católico e para ele isto era um pouco complexo e pouco cientifico).
Como sempre, as histórias da Avó eram muito sanguinárias, aquilo eram sempre muitas facadas, e havia sempre sangue e mortandade, mesmo quando nada o faria prever, por isso a subida de Jesus à Cruz e todo o seu sofrimento eram recebidos com o mesmo horror espantado que as restantes histórias. Porque o João Ratão não cai simplesmente no caldeirão, não, era todo o horror da queda e da panela a ferver e das brasas e dos gritos e...
E salvas as devidas distâncias, em Jesus não era a simples crucificação e morte, eram as lágrimas de sangue de Cristo e os pés esfolados, e depois os joelhos esfolados quando cai, e depois mais lágrimas de sangue, e depois a subida à cruz, até podia ouvir os membros a serem repuxados, os ossos a rangerem, e os pregos nas mãos e nos pés, e depois mais sangue e ainda a coroa de espinhos, tudo aquilo era um sofrimento tão grande que no fim, quando Jesus morre, eu ficava com um sentimento misto de alivio e dor.
Desde essa altura que sinto a Sexta-feira Santa como um dia tristíssimo, graças à minha Avó.
Obviamente que a Avó não acabava ai, a Avó prosseguia até ao terceiro Dia, dia da ressurreição de Jesus, Domingo de Páscoa. Nesse momento eu ficava rejubilante porque um Homem tão bom e sofredor tinha ressuscitado do mundo dos mortos. Assim, para mim, o Domingo de Páscoa, para além de ser o dia em que finalmente podia comer as amêndoas, ficou o dia associado aos recomeços, ou às segundas oportunidades.
Porque já alguém disse que, para os humanos claro, quem faz uma vez, não faz obrigatoriamente duas, mas quem faz quatro faz cinco, e de certeza!
Feliz Páscoa a todas e todos!
Percebi, alguns anos depois, que a Avó era profundamente católica, coisa incompreensível para mim, sobretudo por a Avó ser viúva e ter visto morrer todos os filhos menos um, o meu Pai, e até a minha Tia L. aos 33 anos morreu, com a idade de Cristo, eu sei, mas para mim continua um mistério esta devoção da Avó. Ou talvez, além das meias pelos joelhos, partilhássemos também a esperança nas segundas oportunidades, e a Avó o demonstrasse assim na sua dedicação e amor a Jesus, que estaria lá no Céu a tomar conta dos seus irmãozinhos em Cristo, e filhos Meninos da Avó.
Visitar a Avó materna era após o lanche, e dá outro post com direito a coelhinhos a sério, saudades e uns quantos "depois". ;)
Este post é sobretudo para as minhas filhas que não tiveram oportunidade de conhecerem as suas bisavós nem apreciar as histórias "de faca e alguidar" da Avó C. nem provarem o pão feito pela Avó O.
Estas amêndoas tinham umas rosinhas-mini com folhas pequeninas e pontinhos de açucar branco em volutas arredondadas e em relevo, todo um requinte de malvadez para demorar mais tempo a comer. :D